terça-feira, 19 de novembro de 2013

Eu, Lóri e eu (agradecimento à C.L.)

As gaivotas sobrevoavam a cidade, às 3 da tarde. Descobri o voo pela projeção da sombra na parede branca do prédio na esquina. Projeção bem nítida, qualidade do sol forte das 3 horas.
Era tão lindo. Parecia feito pelo homem. Mas acho às vezes que os homens só enxergam as sombras das gaivotas quando eles mesmos projetam. Assim, sombras de um vôo real, passam tão desapercebidas. É a óbvia beleza discreta da natureza.

Essas sombras, por serem sombras, me deram muita vontade de falar. Mas falar pra dentro. Era só pra dentro que eu tinha palavras. Eu temia falar pra fora. Qualquer barulho meu ameaçava a retomada da mudez interior.
Rezei então para que o telefone não tocasse. Rezei para que o porteiro não tivesse recados. Rezei para chegar em casa sã e muda. Como moro no oitavo andar, subi pelas escadas, evitando qualquer risco de um "boa tarde" obrigatório no elevador. Eram muitos andares, cada andar, um ameaça ao silêncio.

Outra coisa que temia, quando senti o verão quente lambuzando minha roupa, era o sono. A preguiça. A pressão baixa que o calor me dá. Essas coisas são mais fáceis de vencer quando se fala pra fora, mas podem engolir uma pessoa que fala pra dentro. Por garantia, tomei um expresso com cacau e açúcar. Senti então minhas pálpebras seguramente suspensas, sem riscos de tombarem sobre meus olhos.

Agora estava pronta e ansiosa para começar a falar para dentro. Café tomado, em casa, sozinha. Mas, e se eu cansasse do diálogo-monólogo? Sei que o assunto não acaba quando assim se fala, e é essa a questão - falar para dentro é como limpar o mar com uma peneira. Não se acaba nunca.
Se eu cansasse de me peneirar, já sabia um algo/alguém com quem conversaria em silêncio. Com quem, aliás, tenho trocado muito: Lóri.

Seus pensamentos, estáticos e impressos em páginas pequenas e gastas, eram tão vivos e dinâmicos para os ouvidos dos meus olhos. Eu a escutava pensar. E o melhor é que eu sabia, eu sei, que ela escuta todas minhas reações e conselhos. Nem sempre os segue, mas, às minhas perguntas, responde na frase seguinte, já escrita antes de eu perguntar. As respostas existem antes das perguntas. As perguntas só existem porque existem respostas. Só se abrem caminhos porque existem destinos, não é? Pois é, é.

Lóri, que não precisava de mim, me escuta porque somos de algum modo, modo esse que ainda não identifiquei, somos de algum modo parecidas. E ela sabe que eu conheço seu Ulisses, e que sei o modo como ele a tratava.

Falar com Lóri era como falar pra dentro, só que com outro nome. E precisando usar os olhos. Também não cansava tanto quanto um monodiálogo, porque Lóri sempre fazia mais esforço que eu. Ela sabia sofrer melhor. Por isso, ela cansava mais.
As vezes eu sentia seu ar cansado e a deixava. Mas sempre que eu voltava ela já estava a todo vapor falando consigo/comigo, muda.

O telefone tocou. E eu nem cansei ainda de falar. Atendi, porque não poderia não atender. Mas atendi como outra pessoa. Usei outra voz, com o mesmo tom da minha. Mas era uma voz tão rasa que não calou a voz de dentro, que ecoa na profundidade.

Gostei  de usar a voz rasa. Ela foi útil, útil como tudo que vem do ego. Útil para que eu não me gaste nas inutilidades.

Essa voz me deixou alegre. Senti que posso o que achava que não poderia.

Alegria boba e boa, dessas que se encaixam em qualquer lugar. Alegria daqui, que me desobriga a correr para o sol porque faz sol, ou arrumar a cama porque é dia.
Fiquei alegre também de ter um eu para tomar um café trocando amenidades.
A eu com quem converso me desperta muito respeito e hospitalidade. Gosto de tê-la (ter-me) aqui. Fico mais educada, quero causar boa impressão, para que suas (minhas) visitas sejam menos raras.

Mas mesmo gostando, me despeço. Tenho que falar com a Lóri. Não que eu tenha cansado da minha própria cia, mas é que quero tudo, sabe? Tenho muito o que falar e não me arrisco a entediar meu eu com meu maremoto de palavras jogadas mar adentro. Depois serei eu que terei que peneirar. E isso deixaria uma má impressão, para a "mim" que sou eu também.

Agora é a hora da Lóri. Esperarei a cafeína e o sol baixarem um pouco. Senão, falo demais, devolvo cada pensamento seu com filosofias furadas e sem fim. Quero falar pra dentro, mas falar devagar. E quero te escutar, Lóri. Quem sabe eu te responda por escrito, pra registrar nossa mudez. Quem sabe.








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